José Filipe Teixeira

Home | Conhecer | Investigação | Testemunhos

“Testemunho de André Teixeira, neto do antigo preso político, José Filipe Teixeira ”

José Filipe Teixeira

Testemunho de André Teixeira, neto de José Filipe Teixeira

Preso político de 08.03.1048 a 22.10.1950

Registo geral de Presos n.º 18156

Mafra, 8 de outubro 2022

 

O meu nome é André e estou aqui para vos contar um pouco (muito pouco!) sobre o que é ser familiar de ex-presos políticos. Primeiro que tudo, estabeleçamos um ponto. O meu avô morreu em 1998, quando eu não tinha ainda três anos. Significa isto que apesar de o ter conhecido, praticamente não passei tempo com ele, pelo que (quase) tudo o que vou contar é fruto de estórias de família.

O meu avô, José Filipe Teixeira, foi preso em 1948. À data, ele era guarda-livros no Grémio da Lavoura. Era um funcionário de colarinho branco. Foi preso aqui em Mafra, em casa dele. Passou a primeira noite na esquadra da polícia de Mafra, conhecida por saguão: uma cave fria e húmida, nas antigas cozinhas do palácio da rainha, onde não havia sequer celas em condições. Foi um espetáculo degradante com o objetivo de assustar as pessoas e de mostrar que era a ditadura que mandava. Foi julgado no 3.º Juízo Criminal de Lisboa e condenado a uma pena de prisão de 20 meses, à perda dos direitos políticos por cinco anos, a mais um ano de detenção por “medidas de segurança” e ao pagamento dos custos de justiça no valor de 1000 escudos. Foi detido a 8 de março de 1948 e finalmente libertado a 22 de outubro de 1951. O crime? Opunha-se à ditadura do Estado Novo.

Mas hoje não venho falar apenas dele. Venho falar sobre a minha avó, com quem ainda vivi por muitos anos. Enquanto o meu avô esteve preso, nas várias cadeias por onde passou (Aljube, Caxias, Setúbal, Peniche), a minha avó foi sempre visitá-lo. Ela não tinha carro nem sabia conduzir, por isso, apanhava a carreira, entenda-se, passava horas num autocarro para chegar à prisão. Lá, a comida que ela levava para o meu avô (e para o irmão dela, que tinha sido preso na mesma altura), era destruída e escrutinada, para que os guardas se assegurassem que não ia nada no seu interior (ainda hoje, os croquetes cozinhados em minha casa são muito mais pequenos por causa disto). Entretanto, o meu avô foi libertado. Os meus avós casaram-se, foram viver para Lisboa, tiveram filhos, o meu avô manteve-se politicamente ativo (no Partido Comunista). Mas a minha avó viveu sempre com medo. Só depois do 25 de abril é que ela aceitou que passassem a viver numa casa comprada em vez de arrendada, porque não queria ficar a pagar uma casa, caso o meu avô fosse preso e ficassem sem o salário dele.

Nestes anos, a ditadura não se mantinha apenas pelas prisões, pela tortura ou pelas mortes; mantinha-se e sobrevivia principalmente alicerçada no medo. Já nos anos 70, quando a minha tia foi detida pela Direção-Geral de Segurança, os inspetores da polícia política revistaram a casa onde eles viviam, na Avenida de Roma, em Lisboa. Os cartazes políticos foram sabiamente tapados pelo meu pai e pelo meu tio por pósteres sobre rallies, desporto de que eles gostavam. Mais engraçado foi o que aconteceu com os livros. A certa altura, leu um dos inspetores: “Título: Le capital de Karl Marx. Autor: Éditions Sociales”! A PIDE tinha a força e as armas. Felizmente, não teve a inteligência ou capacidade para manter o Regime por muitos mais anos.

Seja como for, 48 anos de ditadura fizeram estrago suficiente. Contei, em jeito de piada, que os croquetes em minha casa são mais pequenos porque a minha avó os fazia assim para passarem sem grandes danos pelo crivo dos guardas das prisões. Mas vou contar uma última estória, para acabar, que eu testemunhei, e que mostra como a ditadura deixou cicatrizes que nunca sararam. Durante vários anos, a minha avó viveu comigo e com os meus pais. Durante esses anos, já na primeira e segunda décadas deste século, não foram poucas as noites em que a minha avó acordava em pânico e entrava nos nossos quartos a gritar que tínhamos de fugir e de nos esconder porque vinha aí a PIDE. Quarenta anos depois do fim da ditadura, uma mulher que nunca fora presa, mas que vira o marido e o irmão nas garras da polícia política por vários anos, acordava ainda à noite com medo.

Numa nota de esperança, deixo-vos um poema que encontrei entre os papéis do meu avô. Estou certo que todos conhecem a versão original, mas esta adaptação de 1968 também é digna de ser lida:

Alma cruel e ruim que enfim partiste

Tão tarde diz o povo descontente,

Repousa no inferno, eternamente,

Que nenhum português ficará triste.

 

Mas se lá no inferno onde caíste,

Memória deste mundo se consente,

Não te lembres jamais da lusa gente,

A quem tu, tantos males infligiste.

 

Mas se vires que podes compensar,

De alguma forma o mal que nos legaste

Nestes quarenta anos de penar,

 

Roga a Deus, em quem sempre acreditaste,

Que bem cedo te mande acompanhar,

Pela corja de bandidos que deixaste.

 

Conte-nos a sua história

Contribua para a nossa memória histórica coletiva

Se quiser deixar o seu testemunho contribuindo para a nossa memória histórica coletiva, ou disponibilizar um objeto/documento que seja relevante para o espólio do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade – Fortaleza de Peniche, deixe-nos uma mensagem que nós entraremos em contacto consigo.

Deixe o seu Testemunho




    A informação que vai enviar será guardada e processada através de email apenas para os fins acima mencionados. O MNRL irá tratar a sua informação pessoal com toda a confidencialidade e segurança de acordo com o estabelecido nos regulamentos de proteção de dados. Poderá retirar o seu consentimento de utilização dos dados em qualquer altura. Para tal deverá entrar em contacto com o nosso serviço de apoio a clientes através do endereço do seguinte endereço de email: geral@mnrl.dgpc.pt